teologia para leigos

30 de janeiro de 2017

O REINO REVELADO AOS "PEQUENOS" [E. LECLERC]

«Pobre es la favella más pobre de San Quintín,
lo sabe quien conoce bien las obras del Padre» (NESCIO, en "Dichtertje")




O REINO DE DEUS NA HISTÓRIA DE ISRAEL



(…)

Este messianismo purificado encontrará a sua expressão mais excelsa nos «Cantos do Servo» (Is 42, 49, 50, 52, 53). O «Servo» aparece como a figura messiânica ideal. É ele quem anuncia e realiza a salvação, não apenas de Israel, mas de todos os povos. Este universalismo já não é um universalismo interesseiro, centrado em Israel, mas é um universalismo à medida de Deus: sem limites, sem fronteiras. O «Servo» carrega com o pecado de todos, é castigado, perseguido, humilhado e, finalmente, condenado à morte. Porém, este aniquilamento humano total e absoluto não será o fim de tudo. Pelo contrário, abre assim as portas dum futuro de luz e de glória que revelará, com toda a sua força salvadora, o Reino de Deus; o «Servo» cura as nossas feridas, vivifica-nos com a sua morte, glorifica-nos com o seu rebaixamento.

Ou seja, enquanto os responsáveis da nação judaica se deixavam deslumbrar com um messianismo temporal, expressão da sua vontade de poder, os corações dos Pobres de Yahvé abriam-se – através da humildade e da confiança – a uma esperança que não se alicerçava em nada de humano, mas no poder do próprio Deus.

Nos Oráculos do profeta Sofonias, no Cântico de Zacarias pai de João Baptista, e no Magnificat de Maria a mãe de Jesus encontra-se a mesma inspiração, a mesma ânsia de esperança dos Pobres de Yahvé. Ora, acontece que é neste chão bíblico que Jesus de Nazaré enraíza e cresce. É muito importante re-situar a sua pessoa e a sua mensagem nesta linha histórica e espiritual: a partir das suas origens humildes, da sua vida pobre despojada de qualquer poder temporal, de qualquer ambição política ou da busca de honrarias e riquezas; a partir da sua proximidade para com os humildes, os doentes e os miseráveis de todo o género e feitio; a partir da sua mensagem das Bem-aventuranças evangélicas e da proclamação do Reino, e, finalmente, através das humilhações por si sofridas, da sua rejeição e da sua ressurreição «secreta», Jesus realiza plenamente o tipo bíblico do Pobre de Yahvé.

(…)

É a esta luz que a mensagem de Jesus adquire a sua verdadeira dimensão e se revela em toda a sua profundidade espiritual e humana. É mediante ele, sem dúvida, que nós somos introduzidos no grande debate − sempre actual – que Jesus inaugura na História e que a todos nós diz respeito. Todas as vidas humanas, mais dia, menos dia, enfrentam uma opção fundamental: ou optam por um messianismo que liga a vinda do Reino de Deus à soberania humana, encerrando-as num horizonte terreno; ou optam por um messianismo daqueles e daquelas que, reconhecendo a sua impotência em se salvarem e realizarem a sós, acabam por se abrir – na base da humildade e da confiança – à pura grandeza do Reino de Deus: a grandeza de uma comunhão de amor sem fim com Deus e com todos os nossos irmãos.

Entre estes dois messianismos, a oposição é radical. Não há conciliação possível. Entre um e o outro está a Cruz. De facto, seja qual for a nossa idade, a nossa situação e a nossa experiência espiritual, a abertura ao Reino de Deus revelado em Jesus Cristo não poderá livrar-nos da Cruz. E a Cruz será sempre fracasso: o fracasso do homem, inclusivamente nos seus combates mais justos; o fracasso de toda a tentativa humana de realizar o Reino de Deus nesta terra como o lugar onde o Homem se realiza plenamente.

Crer num «Messias crucificado» é consentir nesse fracasso que dilui todas as nossas tentativas de auto-realização e auto-justificação, e nos coloca nas mãos da Omnipotência amorosa de Deus, tal como Cristo se colocou nas mãos do Pai quando envolto nas trevas da sua agonia na Cruz.

Ditoso aquele que, do fundo da sua impotência para realizar o Bem, possa dizer com toda a verdade: «Só Deus é o bem pleno e a fonte de todo o Bem. Só Ele reina mediante a soberania do seu amor». Este acto de adoração abre-nos à pura grandeza do Reino de Deus, Reino que não é dominação, mas comunhão num amor soberano que nos é oferecido gratuitamente. Sim, ditoso o homem que recebe a sua realização da mão de Deus! — «há caminhos a abrirem-se no seu coração».

Assim, o Cristo dos nossos abismos converte-se no Cristo das nossas ressurreições. Abrindo-nos à pura grandeza do seu Reino, arranca-nos aos nossos becos e estreitezas. Liberta, em nós, a imagem de Deus, essa capacidade de amar que o Criador em nós colocou, mas que está pregueada sobre si própria. O descentramento que a Cruz de Cristo realiza na nossa vida, longe de ser alienante, é fundante: devolve-nos ao nosso verdadeiro ser, abrindo-nos ao amor sem fronteiras do Pai, ao seu sopro criador e redentor.

Éloi Leclerc, franciscano.