teologia para leigos

20 de janeiro de 2017

A FÉ BÍBLICA [G. GUTIÉRREZ]




DEUS REVELA-SE NA HISTÓRIA


Se perguntarmos a um cristão O que é a Bíblia? a resposta imediata que obtemos é a esperada: a Bíblia é a palavra de Deus. Acontece que o manuseamento da Bíblia não é fácil para muitos de nós. Por exemplo, a boa nova não é apresentada, na Bíblia, de modo sistemático: ela não é um livro teológico; não se trata de um catecismo, nem nela existem textos conciliares. Estamos, então, perante um conjunto de livros que narram a história de um povo, mas não como o faria um Manual de História. São relatos rés-vez os factos, quase banais; interpretações dos acontecimentos, meditações espirituais sobre eles; esboços biográficos, versões das pregações dos profetas e de Jesus, reflexões teológicas. A Bíblia é um conjunto diversificado de livros. A sua unidade é-lhe conferida pela narração da fé de um povo da qual colhemos a certeza, a perplexidade, as fraquezas, as deficiências e as alegrias da nossa própria fé no Deus que fez de nós o seu povo. Por tudo isto, a Bíblia é de acesso fácil e ao mesmo tempo difícil.

Hoje em dia, qualquer crente considera importante o contacto estreito com a Bíblia. É o nosso livro de oração por excelência; a sua leitura e comentário permite-nos reencontrar permanentemente o sentido profundo da nossa vida e dos nossos compromissos. Acontece, porém, que abordamos a Bíblia com uma certa insegurança, diria que não nos sentimos num mundo que nos seja familiar, num terreno que nos pertença. Somos assaltados pelo temor de falarmos daquilo que não sabemos: uma leitura séria da Bíblia – esta é a sensação generalizada – exige conhecimentos históricos, filológicos, teológicos, geográficos que, regra geral, ninguém possui.

A ser assim, vamos todos à procura de um especialista em Bíblia – de um exegeta – e acabamos todos dependentes da sua interpretação e da sua ciência.[1] À exegese científica – o que só agudiza ainda mais a nossa insegurança no contacto com a Bíblia – só tem acesso um grupo muito restrito de crentes, membros (na expressão de alguém) de um clube muito caro e exclusivo. Entre os requisitos para pertencer a esse clube está a necessidade de assimilar a cultura ocidental, sobretudo a cultura alemã e anglo-saxónica, à qual a exegese científica, tal como a conhecemos hoje em dia nas igrejas cristãs, está ligada. Podemos perguntar que significado tem essa exegese para um africano, para um asiático ou para um latino-americano, sobretudo nos seus aspectos mais minuciosos. Com isto, não pretendo desqualificar a exegese científica, mas evitar a sua hipertrofia, e lembrar que ela está ao serviço da boa nova aos pobres.

Para uns, o esforço da leitura da Bíblia deve ter como finalidade adaptar a sua mensagem e a sua linguagem ao homem de hoje; para outros, procura-se uma reinterpretação da Bíblia a partir do nosso próprio mundo, uma leitura bíblica a partir da nossa experiência humana e crente. Esta segunda perspectiva é mais radical, ou seja, vai à raiz daquilo que é a Bíblia, daquilo que é a Revelação de Deus na História.

Se a fé bíblica é histórica, a memória é importante. Trata-se da evocação de factos históricos passados a fim de trazer à memória a acção libertadora de Yahvé no presente que habitamos. Um belo texto do Deuteronómio afirma com firmeza: «Não foi com os nossos pais que o Senhor concluiu esta aliança, mas connosco que estamos hoje aqui, todos vivos.» (Dt 5, 3) A aliança foi feita para o hoje; a aliança não é um facto passado, acontecimento ꞋcongeladoꞋ no passado.

Mas, para além de memória, a aliança é liberdade, abertura ao futuro. A evocação da gesta libertadora de Yahvé não é nostalgia de tempos idos. Todos os grandes amores lembram o seu momento inicial: os momentos fortes são lembrados como fonte de alegria, os momentos difíceis como momentos de reafirmação de uma esperança. Em ambos os casos, o olhar aponta para diante e o futuro torna-se missão. A memória surge, então, como condição de uma liberdade criadora. Aquilo que dissemos do Exílio é um vigoroso exemplo de memória (da saída do Egipto) e de abertura (a novos caminhos de liberdade).

A fé de Israel move-se nessa dialéctica de memória e liberdade. É isso que se celebra no culto. Já o dissemos: o culto é o contexto dos «credos históricos». Assim, essa evocação torna presente o passado em função do futuro. Israel celebra não para aplacar iras divinas, mas para dar graças pela libertação e pela Aliança; e para reconhecer / identificar novas intervenções de Deus na sua história. Segundo os profetas, a fidelidade de Israelfazer justiça ao pobreé a condição de um culto autêntico.


Gustavo Gutiérrez op — Notas da palestra proferida na abertura de um Curso de Verão organizado pelo Departamento de Teologia da Universidade Católica, em Lima, Peru (1975).






[1] A «Teologia da Enxada» (org. José Comblin), o CEBI (Carlos Mesters) e a «Divina Humanidad» (frei Marcos, op) permitem-nos, quanto a esta questão, descobrir veios de água fresca igualmente inspiradores. [NdT]