teologia para leigos

30 de novembro de 2012

CLASSE MÉDIA: O QUE É?

A magreza da classe média em Portugal

Sem os serviços públicos e as prestações sociais que têm sido garantidos pelo Estado, que protecção terão as classes médias portuguesas na privação e na miséria? Basta caracterizar estas classes a partir dos seus níveis de rendimentos para se perceber o colapso anunciado pela austeridade e pelo desmantelamento do Estado Social.





É interessante verificar que num país profundamente desigual, como Portugal, se convoque de forma tão parcimoniosa para o debate público o conceito de classe social. Em alguns casos, tal dever-se-á ao entendimento de que as classes sociais são um instrumento de análise desadequado para ler as sociedades actuais, noutros devido à aversão política a uma linguagem maldita conotada com o marxismo[1].
                                                   
O aparente carácter anacrónico ou profano do conceito de classe social implica que se utilizem outras noções para identificar conjuntos de indivíduos que partilham certo tipo de atributos sociais. As noções de «grupo» ou de «segmento» populacional, de «ricos» e «pobres» são algumas das ferramentas de categorização social de serviço. A sua neutralidade simbólica assegura que se possa falar acerca da estrutura social e das desigualdades sociais sem que o proletariado incendeie o Parlamento.

Apesar de o conceito de classe social ser normalmente proscrito dos exercícios de nomeação e interpretação da estrutura e dos processos sociais, tal já não acontece com o de classe média. Toda a gente fala de classe média. Políticos, jornalistas, comentadores, académicos, membros da classe média e membros de outras classes sociais. Nomear enquanto classe o conjunto de indivíduos que se encontram no topo e na base da estrutura de classes é uma prática fora de moda ou herética. Pelo contrário, qualificar a zona intermédia dessa hierarquia social abstracta recorrendo ao seu nome próprio faz parte da normalidade vocabular. (…)

No ano de 2008, o rendimento monetário disponível por adulto equivalente em Portugal do 3º decil era de 477 euros mensais. No caso do 5º decil esse valor cifrou-se em 648 euros e no 8º decil um pouco acima dos 1000 euros[2]. Este indicador é ponderado pela dimensão do agregado doméstico e baseia-se em vários componentes monetários. Como forma de complementar esta informação interessa convocar os dados relativos aos ganhos salariais médios dos trabalhadores por conta de outrem. Neste caso os trabalhadores que se integram no 2º quintil auferiam, em 2009, 577 euros mensais, os do 3º quintil 719 euros e os do 4º quintil 999 euros.

Não só a porção do rendimento detido pelas classes médias em Portugal continua a ser comparativamente mais baixa do que o verificado em termos médios nos países da EU-27, como os seus recursos económicos são manifestamente escassos.(…)

Penso que este tipo de dados não são surpreendentes para o cidadão comum. Há uma dura consciência de que a maior parte da população residente em Portugal consegue na melhor das hipóteses «remediar-se», comprar o necessário e pouco mais. Pão, educação, saúde, uma vida com dignidade. Se pensarmos na base da classe média, isto é, no subconjunto da população que designámos por «classe média baixa», o limiar da pobreza e as privações materiais associadas a esta condição estão à distância de quase nada. E essa distância, esse espaço que separa uma vasta camada da população portuguesa da miséria e da privação, tem sido garantida pela acção do Estado Social através das transferências monetárias que promove para as famílias mais pobres, mas também por um conjunto de serviços que presta à população.(…)

Não ter em linha de conta o impacto do Estado Social em Portugal na melhoria das condições de vida das pessoas e na garantia de uma vida condigna para todos é politicamente irresponsável e lamentável do ponto de vista social.(…)

Frederico Cantante
Investigador do CIES-IUL e do Observatório das Desigualdades.

Le Monde diplomatique – edição portuguesa, Maio de 2012, p. 10.


LINK:


[1] Sugeri, em Setembro de 2012 [«OS BISPOS E A CRISE»], esta hipótese interpretativa para compreender a ausência, na linguagem dos bispos católicos portugueses (bem como na do Vaticano), do conceito de «classe social». Cf.: a Igreja Oficial «faz uso dum subterfúgio para evitar o uso de categorias sinalizadas pela ortodoxia vaticana (de presumível proveniência marxista e ateia, tais como «estratos sociais», «classes sociais», «luta de classes»)»;
[2] Sobre a Pobreza, as Desigualdades e a Privação Material em Portugal, Instituto Nacional de Estatística (INE), Lisboa, 2010.


29 de novembro de 2012

NEOLIBERALISMO - O CASO LETÓNIA

Laboratórios de “resgate”
- o caso Letónia

«Na sequência da austeridade imposta pelo FMI, um terço dos jovens emigrou, o PIB caiu 23%, o serviços públicos estão destruídos. Directora do FMI [Christine Lagarde] elogia: “Vocês indicaram o caminho”» (Jornal La Guardia, Barcelona)

Reportagem chocante das condições de vida em Riga, feita pelo jornalista Andy Robinson, em Julho de 2012. Segue-se parte do texto. (acesso ao texto integral mais a baixo)


Riga [Letónia]



«Diante de uma fotografia gigante das torres medievais pontiagudas e das pontes de aço soviético de Riga, Christine Lagarde dirigia-se a uma sala repleta de executivos e funcionários de fatos cinzentos. O slogan utilizado para anunciar a conferência, ‘Letónia: against all odds” (Letónia: contra todos os prognósticos), fazia lembrar um filme de Rambo. Efectivamente, a directora do Fundo Monetário Internacional (FMI) viera à Letónia para proclamar “missão cumprida”, três anos depois de ter assinado o acordo sobre o resgate da economia letã. “Quem poderia imaginar, em 2009, que estaríamos hoje aqui, a festejar o sucesso da Letónia, depois de um percurso tão difícil? É um tour de force. Vocês indicaram o caminho à zona euro…”, declarou Christine Lagarde.

Qual a razão de tantos elogios a um pequeno país pós-soviético de dois milhões de habitantes, no Mar Báltico, cujo principal produto de exportação é a madeira cortada nas florestas sombrias que se estendem desde a capital até à fronteira com a Rússia? Pois é: porque “somos a experiência em laboratório da desvalorização interna”, ironizou Serguei Acupov, ex-assessor do Governo, que, depois de ter gerido a transição relâmpago para a economia de mercado, em 1990, parece muito menos convencido pela ideologia do short, sharp shock. “Querem um exemplo para a Grécia, Portugal… e Espanha.” Ao dizer desvalorização interna, Acupov refere-se à política de ajustamento através de cortes nos salários e na despesa pública. Apesar de não ser membro da zona euro, a Letónia recusou-se a desvalorizar a sua moeda, o lats, e tornou-se a cobaia da terapia de choque, mais ou menos como o Chile nos anos que antecederam a chamada revolução neoliberal no Reino Unido e nos Estados Unidos. “Escrevemos um novo capítulo nos manuais”, disse um dos participantes na conferência do FMI.

Depois do rebentamento da sua própria bolha imobiliária e da crise de financiamento da dívida, a Letónia assinou, em Dezembro de 2008, um acordo de resgate com a União Europeia e o FMI.

Em troca de créditos no montante de 7,5 mil milhões de euros, o Governo pôs em marcha a mãe de todos os ajustamentos orçamentais, equivalente a 17% do valor da sua economia, em apenas dois anos. A Letónia sujeitou-se à pior recessão económica jamais verificada na Europa, só igualada pela Grande Depressão nos Estados Unidos. O PIB caiu 23% em dois anos. Os salários baixaram entre 25 e 30%. Entretanto, o desemprego aumentava de 5 para 20%, mas o subsídio de desemprego foi reduzido para apenas 40 lats (57 euros) por mês. Quatro em cada dez famílias ficaram em situação de pobreza, mas a taxa única de imposto sobre o rendimento (25%) foi aplicada até mesmo aos rendimentos mensais de 60 euros.

Nem mesmo a Grécia destruiu um quarto da sua economia como fizeram os letões. Contudo, a desvalorização interna está agora a dar os seus frutos, argumentam Lagarde e outros responsáveis pelo ajustamento. A Letónia vai ter, este ano, um crescimento de 6%, mais do que qualquer outra economia europeia, e eliminou os défices externos, passando assim a ser o modelo europeu. “Fizemos aquilo que tínhamos de fazer”, afirmou Ilmars Rimsevics, o severo governador do Banco da Letónia. “Eu diria que cortámos o mal pela raiz, mas os meus assessores aconselharam-me a falar em podar a árvore”, acrescentou, com um sentido de humor muito letão.


30% dos jovens opta por emigrar

A cerca de 12 Km do centro de Riga, Diana Vasilane entende o que sente alguém que é podado. “A minha filha foi para Roma há três meses, quando a empresa onde trabalhava, a Statoil (Noruega), lhe reduziu o salário de 600 para 400 lats. O meu filho foi para a Suécia. O filho do vizinho foi para a Austrália. Aqui, rezamos para não vivermos até muito tarde, porque não haverá ninguém para cuidar de nós”, disse.

O êxodo dos jovens para o estrangeiro já tinha começado após a queda do comunismo. Mas, (…)»


Andy Robinson,
La Vanguardia, Barcelona, 06 Julho de 2012.
[tradç. de Fernanda Barão]

Andy Robinson, nascido nos arredores de Liverpool (1960), viveu em Londres, Sabadell, Barcelona, Nova Iorque e Madrid. É licenciado em Ciências Económicas e Sociologia pela London School of Economics e em Jornalismo pelo El País UAM. Foi correspondente do diário La Vanguardia em Nova Iorque. Trabalhou em Espanha para Cinco Dias, Business Week, The Guardian, The New Statesman, Ajoblanco. Agora escreve para os jornais La Vanguardia e The Nation (Nova Iorque).




28 de novembro de 2012

REFORMAS E SUBSÍDIOS: COMO É?

Você disse «reduzir os encargos»?
- os salários como variável de ajustamento

As discussões sobre a competitividade das empresas sublinham a redução dos «encargos», alimentando um debate enviesado. Com efeito, patrões e governos agem como se as contribuições sociais nome verdadeiro dos ditos «encargos» fossem um pagamento indevido que desfavorece o desenvolvimento económico. Ora, as contribuições são sobretudo uma parte do salário.







«Não podemos ter continuamente encargos sociais que pesem sobre o trabalho.» Esta convicção, expressa pelo ministro socialista da Economia e Finanças, Pierre Moscovici (Le Monde, 17 de Julho de 2012), faz parte das ideias que sobrevivem incólumes à alternância política da primavera passada.

Baixar o «custo do trabalho» reduzindo os «encargos» graças a uma taxa «social» sobre o valor acrescentado (IVA) foi também a promessa do candidato da direita, Nicolas Sarcozy. Este objectivo figura igualmente com destaque na lista das condições enunciadas pelo Círculo da Indústria (uma associação de dirigentes de empresas) para «reconstruir a nossa indústria»: «Em França», afirma este último, «a parte dos encargos patronais destinada a financiar a protecção social é elevada, ao passo que a taxa paga pelos consumidores é relativamente baixa. A transferência maciça das contribuições patronais para uma outra base fiscal poderá permitir que a França convirja com a Alemanha e saia deste impasse, iniciando o esperado choque da competitividade»[1].

«Custo do trabalho» em vez de «contribuições». Trinta anos de convergência política entre a direita e a esquerda governamental banalizaram estas expressões, a visão do mundo que elas veiculam, as consequências sociais que induzem. Não é anódina uma tal metamorfose da linguagem. Tão certo como um custo reclamar a sua redução, o encargo, que «pesa» (sobre o trabalho), «esmaga» (os empresários) e «sufoca» (a criação), sugere que se proceda ao seu alijamento ou, melhor ainda, à sua exoneração.

Estas associações verbais e mentais, que os media elevam à categoria de evidências, têm acompanhado a concretização do desígnio perseguido pelos sucessivos governos: reduzir os salários em nome do emprego.

Porque a contribuição diminuída para favorecer a admissão de trabalhadores com baixos salários, jovens ou desempregados, suprimida pelos auto-empresários ou pelos comerciantes estabelecidos numa zona franca urbana, etc. é também salário: figura como tal na folha de pagamento. A contribuição é também directamente extraída da riqueza produzida na empresa; mas, diversamente do salário líquido, que entra no fim do mês na conta bancária do empregado, é cobrada pelas Caixas da Segurança Social. Que financiam os cuidados médicos e os salários dos profissionais desse sector, as pensões de reforma, as indemnizações diárias dos doentes, bem como os abonos de família e os subsídios de desemprego.

Tal como o salário directo, estabelecido na sequência de negociações colectivas por ramo de actividade e correspondente à qualificação profissional, a contribuição decorre de uma tabela estabelecida pelo Estado ou, no tocante ao subsídio de desemprego, negociada entre o patronato, os sindicatos e o governo. A indemnização diária, a taxa de reembolso dos medicamentos ou a tabela relativa aos actos médicos não constituem preços de mercado (estabelecidos pelo encontro entre a oferta e a procura); resultam de relações de forças sociais e de arbitragens políticas[2].

Em tais condições, que deveremos nós compreender quando Laurence Parisot, presidente do Movimento das Empresas de França (MEDEF), intima o governo a baixar «os encargos patronais e os encargos salariais»[3]? Qual é o projecto do ministro da Rectificação Produtiva, Arnaud Montebourg, que pretende «favorecer a redução dos encargos sociais patronais»[4]? Que propõe François Chérèque, secretário-geral da Confederação Francesa Democrática do Trabalho (CFDT), ao pretender «baixar o custo do trabalho transferindo uma parte dos encargos para a CSG [Contribuição Social Generalizada]»[5]? A resposta é sempre a mesma: reduzir salários. A aplicação deste projecto beneficia de um consenso político que já vem de longe.

Entre 1982, ano da «viragem do rigor» efectuada pela esquerda então no poder, e 2010, a parte dos salários (líquidos mais contribuições sociais) na riqueza produzida anualmente em França o valor acrescentado recuou oito pontos. Esta evolução resulta de uma dupla decisão política. Por um lado, durante esse período, o aumento dos salários líquidos foi muito limitado. Por outro lado, as taxas de contribuição social deixaram de subir, ao passo que as necessidades correspondentes continuaram a aumentar. O congelamento da contribuição patronal para a velhice surgiu a partir de 1979; o da contribuição patronal para a saúde, em 1984. Seguiu-se o congelamento da contribuição patronal para o desemprego, em 1993, o da contribuição salarial em meados dos anos 1990 e o da contribuição patronal para a reforma complementar (AGIRC e ARRCO) em 2001. Paralelamente, desenvolveram-se as políticas de isenção ou redução das contribuições sociais, que passaram de um montante de 1,9 mil milhões de euros em 1992 para 30,7 mil milhões em 2008[6]. É o imposto e portanto o contribuinte que compensa aquilo que a Segurança Social não recebe. Como qualquer doente, desempregado, pai ou reformado já pôde notar, semelhante evolução implica a degradação das prestações correspondentes, ou seja, a degradação do seu salário.




O resultado de tudo isto é uma transferência sem precedentes[7]. Cumulativamente, desde 1982, a deformação da partilha da riqueza fez com que passasse dos salários para os lucros o equivalente a 1,1 biliões de euros de salários brutos e 400 mil milhões de euros de contribuições patronais. O sacrifício podia ter sido justificado se tivesse alimentado o investimento, suposta promessa de criação de empregos. Mas estes 1,5 biliões de euros alimentaram sobretudo os dividendos (rendimentos líquidos distribuídos pelos accionistas) e a poupança das empresas, que entre 1982 e 2010 aumentaram, respectivamente, seis e nove pontos. No âmbito do emprego, os progressos revelam-se menos tangíveis. (…)


(..) O perigo actual decorre precisamente da vontade do governo [francês] de levar por diante a fiscalização da Segurança Social, ou seja, a passagem de um modelo baseado na contribuição para um outro assente no imposto. No plano contabilístico, estas duas opções não diferem verdadeiramente, se o volume das receitas for idêntico. O debate situa-se noutro plano: entre recursos provindos directamente da riqueza no momento da sua divisão entre lucros e salários (salário líquido mais contribuições sociais) e recursos provenientes da redistribuição, ou seja, do imposto colectado pelo Estado após a repartição entre salários e lucros.

A primeira solução fortalece o salário contra o lucro; a segunda legitima o lucro e enfraquece o salário.




Christine Jakse
Socióloga. Autora de L‘Enjeu de la cotisation social, Éditions du Croquant, Bellecombe-en-Bauges, 2012, e membro da rede popular Réseau Salariat (www.reseau-salariat.info).






[1] Les Échos, Paris, 19 de Junho de 2012.
[2] O assédio psicológico e a culpabilização moralizante (pelo simples facto de estar doente…), por parte das instâncias governamentais (ex.: hospitais, etc.), tem passado por colocar na mão do doente, à saída da instituição, o “valor de mercado” de todos os actos médicos (e não só) que ele “consumiu” (gastou), a fim de que tome consciência do peso económico que ele está a ser para a sociedade… É como se lhe esfregasse na cara a factura ou o marcasse, no braço, com uma cruz sionista! [Nota do Editor deste blog]
[3] «Laurence Parisot: “ la situation est gravissime"», Le Figaro, Paris, 14 de Outubro de 2012.
[4] «Arnauld Montebourg lie baisse des charges et investissements», Reuters, 8 de Outubro de 2012.
[5] Derek Parrot, «Chérèque défend Hollande et tacle FO et la CGT», Les Échos, 3 de Setembro de 2012.
[6] Projecto de lei de Financiamento da Segurança Social 2013, anexo 5.
[7] Ler François Ruffin, «Não há dinheiro para os salários?», Le Monde diplomatique – edição portuguesa, Janeiro de 2008.

27 de novembro de 2012

A CONSTITUIÇÃO É INCONSTITUCIONAL?

A democracia nunca é excessiva
- não há limites para a democracia… só para o autoritarismo!

Assembleia Constituinte_1975



1.Cédric Durand e Razmig Keucheyan, dois professores universitários parisienses (respectivamente, de economia na Univ. Paris XIII e de sociologia na Univ. Paris IV-Sorbonne) afirmam que, apesar da atribuição do Prémio Nobel da Paz à União Europeia no passado dia 12 de Outubro de 2012, «o Banco Central Europeu e a Comissão Europeia de Bruxelas estão a levar a cabo uma guerra orçamental contra vários países membros[1]» dessa mesma União. A actuação destas instituições europeias assenta as suas bases, pacientemente erguidas, num «regime político autoritário susceptível de suspender os procedimentos democráticos invocando a urgência económica ou financeira». Tal actuação «reduz à condição de quase protectorados os países que se encontram sujeitos a programas de assistência».

E explicam porquê.

.«Governos eleitos obrigados a demitirem-se e a serem substituídos por tecnocratas sem legitimidade democrática;

.preeminência de instituições supostamente «neutras», como o BCE;

.apagamento do papel do Parlamento Europeu, cujo presidente, o social-democrata alemão Martin Schulz, em vão tenta fazer reconhecer o seu papel;

.anulação de referendos;

.intrusões do sector privado nas tomadas de decisões políticas…»

E concluem: «Desde a sua origem, o projecto europeu inscreve-se nessa lógica de pôr os povos à distância.»

2.O professor universitário, António Carlos dos Santos, analisa[2] «a política fiscal» contida na Proposta de Lei de Orçamento do Estado para 2013 (POE 2013) em debate no Parlamento português. No último capítulo, «Avaliação da constitucionalidade das medidas fiscais» (os dois outros capítulos são: «Apreciação político-ideológica» e «Avaliação do quadro macroeconómico»), diz:

«Mas, talvez mais grave que isso é o facto de entrarmos num terreno em que a tributação pode ser confiscatória, por estar para além da capacidade contributiva e não ser conforme ao princípio da proporcionalidade, facto aliás, acentuado pela diminuição/ eliminação das deduções à colecta, a ponto de poder pôr em causa as necessidades do agregado familiar. É, aliás, o que, com santa ingenuidade, o próprio relatório da POE 2012 confessa quando, no intuito de defender o aumento de progressividade do IRS nos novos escalões, diz que a estrutura destes escalões «foi desenhada de modo a que o esforço contributivo cresça mais depressa do que a capacidade contributiva»[3].

«Ora, pagar impostos acima da capacidade contributiva, tem um nome: confisco. E esta é uma fronteira que um Estado de direito não pode ultrapassar[4].

3.É, pois, legítimo interrogar-nos: estamos perante insanidade governamental, incompetência ou premeditação política, ideológica?

4.António Manuel Hespanha e Teresa Pizarro Beleza (professor e professora catedráticos de Direito, sendo a prof.ª Teresa P. Beleza Directora da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa) analisam as actuais relações da Política com o Direito Constitucional[5]. É deste trabalho que retiramos os excertos, que se seguem.

«A sujeição da política à Constituição e ao direito tem sido ultimamente posta em causa, quer pelos (liberais) que crêem que o direito se reduz aos equilíbrios espontâneos de uma comunidade política que [eles] reduzem ao «mercado», quer pelos (realistas) que acham que, perante as necessidades e as urgências, a Constituição e o direito constituem entraves escandalosos às medidas que se alega serem realmente indispensáveis.» (…)

«Mesmo o argumento aparentemente final de que “não há dinheiro” para cumprir a Constituição é falacioso. Dinheiro há sempre, para umas coisas ou para outras. Se não há para umas, é porque está destinado a outras. Esta escolha entre “umas” e “outras” é o espaço da política.» (…)

«Defender que a Constituição paralisa a política,

- porque garante a igualdade ou a proporcionalidade dos encargos e sacrifícios de cada um,

- porque salvaguarda os direitos adquiridos,

- porque reserva ao Parlamento a decisão sobre impostos e encargos semelhantes,

- porque preserva a independência nacional perante ingerências externas,

é propor um regime político semelhante aos que existiam antes das revoluções democráticas ou nas ditaduras contemporâneas. Como o Estado Novo, em que, apesar de tudo, se mantiveram algumas garantias formais, frequentemente ignoradas na prática. Mesmo no auge da Guerra Colonial, o estado de excepção ou de emergência nunca foi declarado, nem formalmente, nem desta forma extra-constitucional de «ditadura financeira» em que agora se entra…

«Depois da Revolução de 1974, a Constituição configurou um Estado social e democrático de Direito, que ainda hoje mantém uma lógica de direitos políticos, civis, económicos, culturais e sociais que honraram a Declaração Universal em que se inspirou e os Pactos Internacionais de direitos que consolidou na ordem interna. Substancialmente, o regime político que emergiu da democracia exclui em absoluto processos de governação ditatorial, ou seja, regimes em que quem governa possa tratar arbitrariamente os governados, confiscar os seus bens, impor-lhes tributos não consentidos, distribuir arbitrariamente os benefícios, sujeitá-los a um estatuto de tipo colonial.»

«Por isso é que, nesta altura, é necessário voltar às coisas mais básicas das ideias políticas ocidentais e defender que faz absolutamente sentido que

- por cima das vontades das pessoas, dos grupos e dos governos,


- por cima das concepções que cada um tenha acerca daquilo que é indispensável, urgente, vantajoso,


haja princípios e processos a que mesmo os mais fortes, mesmo as maiorias, mesmo os mais iluminados e os super-dotados, tenham que se sujeitar. E que como esta ideia não é auto-executável faz perfeito sentido, tanto a garantia do cumprimento da Constituição, como a existência de órgãos de vigilância constitucional independentes das maiorias parlamentares.»(…)






«O que estes improvisados reformadores constitucionais têm proposto não se limita, de facto, a alterar meros tecnicismos constitucionais ou mesmo as secções “políticas” da Constituição, como a tendencial gratuidade dos serviços nacionais de saúde ou de educação, as garantias dos direitos dos trabalhadores, as exigências de protecção da infância, da juventude, ou da deficiência. Não. O que eles têm atacado são coisas tão fundamentais como o primado do direito sobre a mera oportunidade, a natureza constitucional da Constituição, o respeito pelos direitos sociais, laborais e patrimoniais adquiridos, a igualdade de tratamento dos cidadãos e das situações jurídicas. Ao mesmo tempo que atacam o Tribunal Constitucional como um órgão cuja liberdade de opinião se basearia na irresponsabilidade de quem não tem de governar.»

«Um destes princípios constitucionais definidos como particularmente invioláveis foi o da garantia dos direitos adquiridos. O acórdão do Tribunal Constitucional evoca-o claramente na discussão acerca da possibilidade de reduzir salários, reformas ou pensões sociais. É este princípio que consagra a propriedade de cada um, a validade dos contratos livres e legalmente estabelecidos, a proibição do confisco, o princípio da legalidade dos impostos, o direito às prestações públicas de natureza contratual. Enfim, coisas básicas, sem as quais dificilmente se concebe que se possa viver numa sociedade civilizada. Que os salários contratados ou as pensões em que os pensionistas até já pagaram a sua parte sejam direitos adquiridos é algo que poucos ousam discutir. Sobretudo quando, por outro lado, defendem a intangibilidade de outros rendimentos também pagos pelo Estado a particulares, em virtude de outros tipos de contratos (como as parcerias, as concessões, os contratos de compensação de riscos ou de prestações de serviço público).» (…)

«Realmente, se se enveredasse por esta via da violação de direitos em nome da extrema necessidade, haveria três coisas que teriam sempre que ser claramente demonstradas:

(1)                 que a necessidade era tão extrema que justificava medidas também extremas;
(2)                 que essas medidas iam resolver o problema;
(3)                 e, que não havia medidas alternativas.


Provar isto cabalmente é muito mais do que repetir, com cara compungida, as litanias que ouvimos todos os dias sobre a inevitabilidade da política de austeridade que tem sido adoptada.» (…)

«Sem o princípio da igualdade, desaparece o Estado constitucional. (…)

«A igualdade é um princípio universal, que se aplica a todos os sacrifícios. Ou seja, se estamos em guerra, todos têm de contribuir para esta guerra de todos. Distribuindo o sacrifício, por igual, por todos os rendimentos, de modo a ofender minimamente cada um deles: salários, lucros de empresas, dividendos distribuídos, remunerações de parcerias público-privadas (PPP), ganhos de mais-valias, rendimentos exportados para paraísos fiscais, activos de grandes fortunas, consumos sumptuários, juros de credores, etc. Para não falar da enormidade da fraude fiscal e da cada vez mais florescente economia paralela. Se a uns se impõem finanças de guerra, têm de se impor igualmente a todos. Desta realização do princípio da igualdade pouco se fala, apesar de ela apontar para soluções muito mais justas, economicamente mais razoáveis e muito mais adequadas ao objectivo de suster a crise.»

«A tarefa do Tribunal Constitucional é bastante difícil, sobretudo quando se cobre o país de um fogo cerrado de medos e de ameaças catastróficas. No entanto, perante uma governação leviana, democraticamente deslegitimada pela violação contínua das promessas eleitorais mais centrais, e perante o seguidismo da maioria parlamentar, só parece restarem duas formas de pôr termo ao experimentalismo, à incompetência e à teimosia de um governo que esbraceja para provar que vive: ou o veto político do presidente da República ou a cassação constitucional.» (…)

E, para terminar, os autores concluem que, caso o Tribunal Constitucional falhe na sua função de garante da ordem constitucional, «sela a sua inutilidade no nosso sistema político-constitucional, transformando-se de um contra-peso ao voluntarismo tenaz das maiorias num reforço inesperado de maiorias de vocação autoritária.

«Teríamos, então, mais do que algum partido alguma vez pediu entre nós: “um Governo, um Parlamento, um Presidente e um Tribunal Constitucional”». [António Manuel Hespanha e Teresa Pizarro Beleza, «Sair da crise sem sair da cultura constitucional», Le Monde diplomatique – edição portuguesa, Novembro de 2012, pp.6-8]



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[1] Ler: «Rumo a um cesarismo europeu», Le Monde diplomatique – edição portuguesa, Novembro de 2012, pp. 14-15.
[2] Ler: «Um orçamento de Merkel e de Sade», Le Monde diplomatique – edição portuguesa, Novembro de 2012, pp. 9-11.
[3] Ibidem, cf. Relatório do OE 2013, pp. 65-66.
[4] ibidem. NOTA 2; «Lembremos que os contribuintes não pagam apenas IRS. Um trabalhador por conta de outrem que seja tributado no último escalão (um rico remediado), verá as suas deduções à colecta reduzidas a zero, pagará 11% para a segurança social (mesmo que contemplado na dedução específica do IRS tem impacto imediato), IVA nas compras de bens e serviços, imposto municipal sobre imóveis (IMI) pela casa própria em que habita, imposto pela gasolina ou gasóleo, taxa de esgotos e muitos outros tributos. Ou seja, o seu rendimento líquido disponível após tributação não deverá ser superior a 30% a 40% do que aufere. E tudo isto, não para melhorar os serviços de educação, de saúde, da justiça, da segurança social ou da cultura, ou para combater o desemprego, mas para piorá-los! Note-se que o aumento de despesa, tirando a questão da segurança social, explicável pelo incremento do desemprego, dar-se-á apenas nas funções repressivas do Estado.
[5] Ler «Sair da crise sem sair da cultura constitucional», Le Monde diplomatique – edição portuguesa, Novembro de 2012, pp.6-8.