teologia para leigos

1 de outubro de 2012

PHILIA OU ÁGAPE?

Ágape - a caridade cristã





Desde sempre (desde Jesus de Nazaré) que a condição cristã está marcada pelo selo da urgência do ‘amor extremo’ (Jo 13:1), amor que o comportamento de Jesus sugere e concretiza: «Sabeis o que ocorreu em toda a Judeia, a começar pela Galileia, depois do baptismo que João pregou: como Deus ungiu com o Espírito Santo e com o poder a Jesus de Nazaré, o qual andou de lugar em lugar, fazendo o bem e curando todos os que eram oprimidos pelo diabo, porque Deus estava com Ele.» (Act 10:37-38)

A palavra ‘amor’ pode ter vários significados: amizade, simpatia (philia), erotismo (eros), etc. Mas àquele tipo de amor (jesuano), a linguagem grega reservou a expressão “ágape”: amor criador desinteressado, oferta (desinteressada) de si mesmo, algo que o ser humano persegue por sentir como algo muito próximo do máximo amor possível, dum ‘amor divinal’. É a ele que os cristãos referem a palavra CARIDADE. Todos os seres humanos, quando fazem a experiência do amor, perseguem este tipo de amor extremo na linha do slogan «ame-o ou deixe-o»… Todo o tipo de amor tende naturalmente para o extremo. Quando não tende é porque está contaminado e não é espontâneo, natural.

Nos tempos que atravessamos, tempos marcados por uma das maiores crises económicas de sempre, o amor tem para todos uma dimensão social e um lado económico e material muito agudos. Mais ainda tem, quando a Hierarquia católica e algumas figuradas conotadas com a igreja católica vêm a público falar do amor cristão (charitas) na forma de «prática activa da caridade»: a caridade cristã.

Antes de clarificar o que se entende por Caridade cristã, convém recordar que, desde os primórdios do cristianismo, a caridade cristã (‘amor-ágape’) foi encarada como possuindo uma dimensão social, política e económica inalienável. No Cântico de Maria (Lucas 1:48-56), a referência à dimensão económica e política da acção do amor de Deus entre nós é explícita: «manifestou o poder do seu braço e dispersou os soberbos. Derrubou os poderosos de seus tronos e exaltou os humildes. Aos famintos encheu de bens e aos ricos despediu de mãos vazias.» Este é também um aspecto central nas Bem-aventuranças, na forma de proposições antitéticas: «Felizes vós, os pobres (…) Mas ai de vós, os ricos». (Lc 6:20.24)

O próprio João, numa das suas cartas, associa a visibilidade da presença de Deus ao amor entre os homens tornando assim impossível remeter o Amor cristão (a Caridade cristã) para uma esfera exclusivamente platónica – Deus só existe, Deus só se dá a ver sob a forma do amor partilhado aqui, no coração da história humana e não num além qualquer: «A Deus nunca ninguém o viu; se nos amarmos uns aos outros, Deus permanece em nós e o seu amor chegou à perfeição em nós.» (1Jo 4:12)

Jesus de Nazaré fundiu os três tipos de amor possíveis num só. Em Marcos (12:28-34) isso é bem claro: o amor a Deus, o amor ao outro e o amor a mim próprio tornam-se inseparáveis entre si. Mais: o relato evangélico chega ao ponto de dizer que isso é superior aos gestos litúrgicos meramente piedosos! «Amar a Deus com todo o coração, com todo o entendimento, com todas as forças, e amar o próximo como a si mesmo vale mais do que todos os holocaustos e todos os sacrifícios (= rituais religiosos desprovidos de amor ao próximo).» (v.33) O relato termina assim: «Vendo que ele [o escriba] respondera com sabedoria, Jesus disse: «Não estás longe do Reino de Deus.» E ninguém mais ousava interrogá-lo.»

Daqui se conclui que Deus é amor partilhado em todas as suas dimensões: pessoal e existencial, social, económica, política, etc. Em resumo: o amor cristão (a caridade cristã) não pode surgir fruto dum mandamento ou duma lei (divina ou eclesiástica) que a obrigue: a caridade cristã é a antítese do «ter de amar»… A caridade cristã é o mar em que o cristão se banha e mergulha: na caridade cristã não há lugar para compartimentos ou divisórias estanques (no voluntariado sou assim, em minha casa ou de férias sou assado). Ser cristão é ‘dar a vida’ e não, apenas, dar bens, dinheiro ou objectos por mais valiosos que sejam. «Ninguém tem mais amor do que quem dá a vida pelos seus amigos.» (Jo 15:13). Na peugada de S. Agostinho, isto quer dizer que existem muitos ateus que são muito mais cristãos que muitos crentes…

Num dos textos maiores da espiritualidade cristã, Paulo fala do Amor («Cântico do Amor»; 1Cor 13:1-13), das suas falácias (v.1-3) e qualidades (v.4-8).

Deste magnífico texto, existem dois aspectos que quero isolar. O primeiro, é uma crítica explícita a tudo o que seja exibicionismo ou imposição (auto ou alheia ao livre-arbítrio) resultante do exercício da Caridade cristã: «Ainda que eu fale as línguas dos homens e dos anjos» (…) «Ainda que eu tenha o dom da profecia e conheça todos os mistérios e toda a ciência, ainda que eu tenha tão grande fé que transporte montanhas» (…) «Ainda que eu distribua todos os meus bens e entregue o meu corpo para ser queimado», «se não tiver amor, de nada me aproveita.» (v.1-3)

O segundo, diz respeito a duas qualidades que a caridade cristã deve cumprir para, de facto, ser Ágape. O amor-caridade «não é invejoso, não é arrogante nem orgulhoso» (v.4), e «nada faz de inconveniente, não procura o seu próprio interesse, não se irrita nem guarda ressentimento.» (v.5) A procura da ausência de inveja (de anti-‘zelos’) cria a obrigação de buscar relações que façam com que o outro seja bem sucedido por si próprio sem estar sujeito à «inveja mimética» (R. Girard) que sempre introduz comparações, tensão disjuntiva e, portanto, contenda, donde resultam superiores e inferiores, "diferentes". A busca da não inconveniência (de ‘a-skhêmonein’, ‘skêma’=harmonia) pressupõe o absoluto respeito pela igualdade entre os parceiros, a qual se deveria plasmar neste princípio: antes de ter deveres, o pobre tem direito a ter tudo aquilo que o rico tem! Ou seja, o exercício da caridade cristã deveria começar por um pedido de desculpas: tudo o que é meu é também teu! Portanto, a caridade cristã só pode ser a busca do restabelecimento duma harmonia ferida. A caridade cristã não se pode ficar pela minoração ou mitigação de disparidades (na linha do «nem prata, nem ouro, antes FAZ CAMINHO CONNOSCO na Via de Jesus Cristo Nazareno»; Act 3:6). A «ausência de inveja» (=igualdade absoluta de condições) e a «não inconveniência» (=busca da harmonia ferida) são as condições para que a caridade-ágape inaugure um reino de reparação real e eficaz. O "amor-ágape", a caridade cristã, vai mais além da reivindicação de (apenas) "mais justiça jurídica".

É também isso que quer dizer a expressão «o Amor não procura o seu próprio interesse»: só assim é possível dar o ponta-pé de saída rumo a um amor verdadeiramente dialogante em que quem verdadeiramente «ama» não começa por perguntar “até onde estou disposto a ir”, mas “que me estão a pedir?”.

Lembremos aquele momento em que Jesus interroga Pedro, por três vezes, sobre os seus ‘planos para o futuro’ (Jo 21:15-17) e em que Pedro não consegue ir até onde o Mestre quer que ele vá…

[Jesus fala-lhe em alhos (ágape) e Pedro responde SEMPRE em bugalhos (philia), até que Jesus desiste…; cf. «Depois de terem comido, Jesus perguntou a Simão Pedro: «Simão, filho de João, tu amas-me [ágape] mais do que estes? Pedro respondeu: «Sim, Senhor, Tu sabes que eu sou deveras teu amigo [philia].» Jesus disse-lhe: «Apascenta os meus cordeiros.» (…) «Voltou a perguntar-lhe uma segunda vez: «Simão, filho de João, tu amas-me? Ele respondeu: «Sim, Senhor, Tu sabes que eu sou deveras teu amigo.» Jesus disse- lhe: «Apascenta as minhas ovelhas.» (…) «E perguntou-lhe, pela terceira vez: «Simão, filho de João, tu és deveras meu amigo [philia]? Mas respondeu-lhe: «Senhor, Tu sabes tudo; Tu bem sabes que eu sou deveras teu amigo]

Neste espantoso diálogo cénico, fica claro que viver a Caridade (ágape) cristã é “dar o litro”, é “dar a pele” por alguém, é “calçar os sapatos do outro” (G. Gutiérrez) e não apenas desenvencilhar-se do outro despachando-o com umas ‘sobras’, alguns restos.

É nesta linha que S. Basílio Magno (de Cesareia Mazaca, Capadócia; 329-379 dC; CLICAR AQUI) se situa aquando da Homilia 6ª sobre a frase «Deito abaixo os meus celeiros, construo uns maiores e guardarei lá o meu trigo e todos os meus bens.» (Lc 12:18)

«Homem, inteira-te de quem é aquilo que te calhou em sorte! Lembra-te de ti mesmo: quem eras e que bens agora administras, de quem os recebeste, porquê foste tu o preferido para os administrares? Foste constituído ministro dum Deus liberalíssimo, foste constituído em administrador dos bens dos teus irmãos. Não penses que tudo isso se destina ao teu ventre. Dispõe do que possuis como coisa alheia. As riquezas, uma vez alcançadas, deleitam; ao usarem-se, dissipam-se como fumo: delas terás de prestar contas muito rigorosas.» [2.]

«Diz o avarento: − Porventura injurio eu alguém só por querer para mim o que é meu? – Mas, diz-me: o que é que é teu? Donde trouxeste à existência isso que recebeste? Como se um espectador, por ter ocupado um lugar no teatro, pudesse impedir a entrada dos demais só por pensar ser apenas seu aquilo que foi criado para uso de todos: assim se comportam os ricos. Por fazerem, dos bens comuns de que eles se ocuparam primeiro, bens próprios apenas pela simples razão de terem sido eles os primeiros a tomá-los.» (…) «Porventura, não saíste do ventre da tua mãe nu? E não serás recebido, pela terra, desnudado, no seu seio?» (…) «O pão que arrecadas é propriedade do faminto». [7.]

Verter estes valores (esta espiritualidade) para um comportamento (inter-pessoal ou politico-institucional) acarretaria uma verdadeira revolução política abrangente, incompatível com mera distribuição de excedentes ou com o desdém e a perseguição a que politicamente são votados os estratos mais desfavorecidos da nossa sociedade nos tempos de crise que atravessamos.

Moldar a Igreja católica à luz desta espiritualidade constituiria, verdadeiramente, uma «Nova Evangelização».

O que é que, de novo, temos de propor para que a política seja mais justa e a Igreja católica seja a Casa duma Boa-Notícia?



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