teologia para leigos

26 de março de 2012

RESSURREIÇÃO 3/3

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 As aparições de Cristo, origem da fé na Ressurreição_4



A profissão de fé na Ressurreição de Jesus é a resposta às aparições. Só elas retiraram a ambiguidade do sepulcro vazio e deram origem à exclamação dos Apóstolos: Ele ressuscitou verdadeiramente! Os evangelhos, ao nível redacional, transmitem-nos os seguintes dados: as aparições são descritas como uma presença real e carnal de Jesus. Ele come, caminha com os discípulos; deixa-se tocar, ouvir, dialoga com eles. Sua presença é tão real que pôde ser confundido com um viandante, com um jardineiro e com um pescador. Contudo, ao lado destas representações maciças, há afirmações que não se coordenam mais com aquilo que conhecemos do corpo: o Ressuscitado não está mais ligado ao espaço e ao tempo. Aparece e desaparece. Atravessa paredes. E nós nos perguntamos: quando isso acontece, ainda podemos falar, com propriedade, de corpo?

Se considerarmos as aparições ao nível da história das tradições (das quais se originaram os evangelhos como os temos hoje), o problema apresenta-se bem mais complexo. Aqui se verifica o seguinte fenómeno: de uma representação espiritualizante da ressurreição como em 1Cor 15:5-8; Act 3:15; 9:3; 26:16; Gl 1:15 e Mt 28, passa-se para uma materialização cada vez mais crescente como em Lucas e João, nos evangelhos apócrifos de Pedro e aos Hebreus. A necessidade apologética obrigou os hagiógrafos a tais concretizações. Para além disso, as aparições, quanto mais recentes são os textos, tanto mais se concentram em Jerusalém e mais se aproximam do tema do sepulcro vazio. Um problema à parte é o das indefinidas tentativas de harmonização entre as aparições relatadas em 1Cor 15:5-8 e as narradas nos evangelhos. Paulo refere cinco aparições do Senhor vivo. Mc 16:1-8 não conhece nenhuma aparição, mas diz claramente que Cristo se deixará ver na Galileia [7b]. O final de Marcos [16:9-20] condensa as aparições relatadas nos outros evangelhos e, com boas razões, pode ser considerado um acrescento posterior. Mateus 28:16-20 conhece uma só aparição aos Onze, na Galileia, «sobre o monte que Jesus lhes indicara». A aparição às mulheres, às portas do sepulcro vazio [28:8-10], é vista pelos exegetas como uma elaboração ulterior sobre o texto de Mc 16:7: as palavras do Ressuscitado são notavelmente semelhantes às do Anjo. Lucas refere duas aparições, uma aos discípulos no caminho de Emaús e outra aos Onze e a seus discípulos em Jerusalém [24:13-35; 36-53]. João 20 refere três manifestações do Senhor, todas elas em Jerusalém. João 21, considerado como um apêndice posterior ao evangelho, refere outra aparição no lago de Genesaré, na Galileia. Contudo, a interpretação desse capítulo é mais coerente se admitirmos que seja a reelaboração de uma tradição pré-pascal acerca do chamamento dos discípulos [Lc 5:1-11], agora recontada à luz da novidade da ressurreição com a clara intenção de relacionar o ministério de Pedro com o poder do Cristo ressuscitado. Os relatos revelam duas tendências fundamentais: Marcos e Mateus concentram seu interesse na Galileia, enquanto que Lucas e João em Jerusalém, com a preocupação de ressaltar a realidade corporal de Jesus e a identidade do Cristo ressuscitado com Jesus de Nazaré. A harmonização, feita geralmente pela exegese católica, afirmando que primeiro Cristo teria aparecido em Jerusalém e depois na Galileia, está sendo abandonada. As dificuldades dos textos, da maneira das aparições e o melhor conhecimento das tradições e do trabalho redacional dos hagiógrafos, induzem a concluir pelo seguinte: as aparições na Galileia têm mais fundamento histórico; as aparições de Jerusalém seriam elaborações de carácter teológico das vivências na Galileia, com a intenção de relevar o significado histórico-salvífico da cidade e da comunidade primitiva aí formada. «A salvação vem de Sião» [Sl 13:7; 109:2; Is 2:3; cf. Rom 11:26]. Isaías 62:11 diz: «Eis que o salvador vem para ti, filha de Sião». A história da salvação atinge em Jerusalém seu termo e sua plenitude. Lucas, tanto no evangelho quanto nos Actos, frisa esse motivo teológico ligado á cidade: Páscoa e Pentecostes é aí que se realizam. O Ressuscitado será anunciado, começando em Jerusalém até aos confins do orbe [Lc 24:47; Act 1:8]. Essa tendência é mais acentuada ainda no evangelho de S. João: o Cristo joaneu age de preferência em Jerusalém por ocasião das festas do povo.

A tradição da Galileia interpretara a Páscoa de Jesus não tanto como Ressurreição da carne, mas como elevação, glorificação e manifestação do Filho do Homem [cf. Daniel 7:13ss], agora sentado à direita de Deus’, utilizando a linguagem do mundo apocalíptico. Mateus 28:16-20, representante da tradição da Galileia, apresenta o Cristo ressuscitado constituído em Poder como Filho do Homem, transmitindo esse mesmo poder à sua Igreja enviando-a em missão. O Reino imperecível [Dn 7:14] é «traduzido» pela presença constante de Cristo na Igreja [Mt 28:19]. A Ressurreição é vista como a Parusia do Filho do Homem agora presente na comunidade [cf. 2Pe 1:16ss].

A pregação e a catequese da Páscoa de Cristo, elaboradas no horizonte da compreensão dos leitores e ouvintes gregos, obrigaram a uma tradução desta interpretação, na linha da Ressurreição da carne. O kerigma fundamental, agora na tradição do tipo de Jerusalém [Lucas e João], soa da seguinte forma: «Eu estava morto. Mas eis que agora vivo pelos séculos dos séculos. Eu tenho as chaves da morte e do inferno» [Ap 1:18; cf. Rom 6:10]. O problema que surge reside em salvaguardar a realidade da Ressurreição. Cristo vive realmente e não é um «espírito» [Lucas 24:39] ou um «anjo» [Act 23:8-9]. Daí a preocupação em relevar a identidade do ressuscitado com Jesus de Nazaré, descrever e tocar as suas chagas [Lc 24:39; cf. Jo 20:20.25-29] e acentuar que ele comeu e bebeu com seus discípulos [Act 10:41] ou que ele comeu diante deles [Lc 24:43]. Os relatos de vivências do Ressuscitado por pessoas privadas, como Maria Madalena [Jo 20:14-18; cf. Mt 28:9-10] ou dos jovens de Emaús [Lc 24:13-35], são cercados de motivos teológicos e apologéticos dentro do esquema literário das lendas (‘legendes’) para deixar claro aos leitores a realidade do Senhor vivo e presente na comunidade. Exemplo clássico de tal preocupação é o relato dos jovens de Emaús. [cf. J. Dupont, Le repas d’Emmaus, in Lumiére et Vie 31 (1957) 77-92]. O modo como os dois jovens chegaram à fé no Ressuscitado é apresentado como modelo para os leitores: deixar-se instruir pelas Escrituras que falam de Cristo e deixar que os olhos se abram pela «fracção do pão», isto é, pela Eucaristia. É o caminho pelo qual nós ainda hoje chegamos à fé na novidade pascal, pela palavra e pelo sacramento. O relato de Emaús [Lc 24:13-35] segue um estilo literário típico de Lucas, utilizado também nos Actos [8:26-39] ao narrar a conversão do camareiro etíope por Filipe. Em ambas as narrações encontram-se os seguintes paralelos: o Ressuscitado ou Filipe inspirado pelo Espírito explica o Antigo Testamento e relaciona-o com Cristo. No final, o camareiro ou os dois jovens externam um pedido. O ponto culminante do relato reside na recepção de um dos sacramentos que, na Igreja primitiva, eram fundamentalmente dois, a Eucaristia e o Baptismo. Assim, a fé na Ressurreição, para os tempos pós-apostólicos, baseia-se na pregação e nos sacramentos da Igreja que testemunham e tornam presente, e visível, o Cristo Ressuscitado.

Mesmo que não houvesse sepulcro vazio e aparições, seria possível e válida a fé na Ressurreição – por causa da Igreja. [pelo facto da Igreja existir viva e vivificada/inspirada pelo Espírito de Jesus de Nazaré] Esse é o sentido último, reforçado pelo relato da dúvida de Tomé em João 20 com a conclusão: «Felizes os que não vêem e apesar disso crêem» [Jo 20:29].



Tentativa de reconstrução dos acontecimentos pascais_5

Do exposto acima, dois factos resultam claros e indiscutíveis: o sepulcro vazio e as aparições aos discípulos. Foram, porém, feitos tradição e revestidos de várias tendências, conforme as necessidades do momento: necessidades de ordem teológica, apologética, catequética e cúltica. Por isso, reconstruir os acontecimentos pascais constitui uma tarefa arriscada com resultados muito fragmentários e questionáveis. Contudo, a fé, que não se baseia num mito, mas numa história, sempre mostrará interesse pelo «como foi», a fim de eruir mais profundamente para «o que isso significa para mim». Os relatos da Ressurreição, tal como os temos agora, teriam, como pano de fundo histórico, os seguintes pontos:

(1)       A prisão de Jesus que fez realizar o que ele prevenira: «todos irão escandalizar-se de mim» [Mc 14:27; Mt 26:31]. Os discípulos fogem [Mc 14:50; Mt 26:56].
(2)       Eles o revêem ressuscitado primeiramente na Galileia [Mc 14:28; Mt 26:32; Mc 16:7; Mt 28:7.16-20]. Muito possivelmente, o relato dos jovens de Emaús está subordinado ao regresso dos discípulos à Galileia, após o fracasso de Jesus em Jerusalém.
(3)       Um dia depois do sábado, as mulheres têm as primeiras vivências pascais. O nome o número das mulheres varia nos quatro evangelhos. Só Maria Madalena ocorre em todos eles. Elas vão ao sepulcro levar aromas [Lc 24:1; Mc 16:1]. Nada sabem da sepultura selada [Mt 27:66]. Encontram o sepulcro aberto e sem o corpo de Jesus [Jo 20:1; Mc 16:4; Mt 28:2; Lc 24:2]. Fogem com medo e vão informar os apóstolos [Mt 28:8; Lc 24:9ss.23; Jo 20:2; Mc 16:7].
(4)       Um facto determinante para a fé na Ressurreição deu-se algum tempo depois (cf. «depois dos seis dias»: Mc 9:2; Mt 17:1 ou «uns oito dias depois»: Lc 9:28)[1] na Galileia [Mc 16:7; Mt 28:7.16-20; cf. Mc 14:28; Mt 26:32]. Cristo ressuscitado deixa-se ver aos seus discípulos. Esses interpretam as aparições como encontros com Jesus de Nazaré agora elevado junto a Deus em vida eterna e em glória. Sobre as circunstâncias especiais de lugar, de modo e de número de discípulos, no actual estado da investigação, pouco se pode determinar, exacta e historicamente. Seja como for, os discípulos viram nos acontecimentos pascais um facto escatológico, como realização plena e acabada da história de Jesus, agora manifestado Messias e Filho do Homem e de toda a História da Salvação. Anunciar Jesus como Salvador e Juiz universal e seu reinado sobre todas as coisas constitui a missão dos Apóstolos e da Igreja.


Essa reconstrução é certamente precária. Porém, ela contém os dados históricos fundamentais a partir dos quais emergiu a fé na Ressurreição de Jesus como escândalo para muitos [1Cor 2:23; Act 17:32; 23:6-9] e a esperança e a certeza de vida eterna para outros tantos [1Cor 15:50ss].

Resta saber o que significa para a teologia e para a existência humana de fé, hoje, a Ressurreição de Jesus.


Leonardo Boff
A nossa ressurreição na morte
Ed. Vozes, Petrópolis 2004, 10ª edição, pp-41-55


[1] Já dissemos que a frase «ressuscitou ao terceiro dia» não contém uma reminiscência histórica, mas é, antes, uma proposição dogmática. Cristo apareceu alguns dias após. A transfiguração de Cristo, colocada no tempo da vida terrestre de Cristo, contém traços claros de ser uma aparição do Ressuscitado retro projectada para o tempo antes da sua morte e ressurreição; agora, como está, revela o processo de catequese da Igreja primitiva ainda em andamento, onde elementos históricos de Cristo são retrabalhados com outros acontecidos depois da Páscoa do Senhor (anúncio da paixão com o convite a seguir a Cristo no caminho da cruz: Mc 8:31-38par).