teologia para leigos

26 de março de 2012

RESSURREIÇÃO 1/3

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O caminho da exegese crítica
sobre os textos da Ressurreição



Os estudos exegético-críticos acerca dos textos da Ressurreição tornaram-se um mare magnum, a ponto de ser difícil para os próprios especialistas se poderem orientar. O que aqui apresentamos quer ser apenas uma indicação das pistas pelas quais caminha hoje [1996] a exegese, tanto a católica, quanto a protestante. Isso nos ajudará a compreender melhor as várias interpretações atrás arroladas e deverá servir de base para nossas reflexões de ordem sistemática.



Como era a pregação primitiva sobre a Ressurreição?_1

Os exegetas estão de acordo que a pregação primitiva da Igreja sobre a Ressurreição não deve ser buscada nos evangelhos nem em S. Paulo, mas sim nas fórmulas pré-paulinas e pré-sinópticas, que através dos métodos morfo-críticos descobrimos assimiladas em S. Paulo, nos evangelhos e especialmente nos Actos. Nos discursos de Pedro nos Actos 2-5 e em Paulo 1Cor 3-5 encontramos essas fórmulas antigas. Paulo diz expressamente que «transmite aquilo que ele mesmo recebeu» (1Cor 15:3). O próprio estilo literário de 1Cor 15:3-5 trai a antiguidade da fórmula que Paulo já encontrou fixada na comunidade de Jerusalém por volta do ano 35 aquando da sua primeira viagem àquela cidade. A estrutura formal rígida é a mesma nos Actos e em 1Cor 15:3-5:

a)   Cristo morreu… foi sepultado;
b)  Foi ressuscitado (ou ‘Deus o ressuscitou’: Act 2:4);
c)   Segundo as Escrituras;
d)  Apareceu a Kefas e depois aos Doze (ou «E disso nós somos testemunhas»: Act 2:32).

Nos discursos de Pedro nos Actos (2-5) a mensagem pascal é anunciada dentro de duas categorias de pensamento: uma apocalíptica e outra escatológica.

Na apocalíptica, que florescia no judaísmo pós-exílico, havia a ideia do justo-sofredor, humilhado e exaltado por Deus (cf. Sab 5:15ss). Isso tornou-se um leitmotiv das cristologia antiga como em Lucas 24:26 e Filipenses 2:6-11: «Ele se humilhou a si mesmo, por isso Deus também o exaltou». Nos discursos de Pedro encontramos semelhante explicação do acontecimento pascal: «Vós o mataste… contudo foi elevado à direita de Deus» [Act 2:24.33]. Mais adiante: «Deus o exaltou à sua direita como Autor (da vida) e Salvador» [5:30.31; cf. 3:13-15]. Com muita probabilidade esse esquema está ligado ao outro do ocultamento de Jesus [Act 3:21], como ao do profeta Henoc e Elias. Assim como Elias foi «arrebatado» ao céu [2Rs 2:9-11; 1Mac 2:58] da mesma forma Jesus [Act 1:9-11.22; Mc 16:19; Lc 9:51; 1Tm 3:16; 1Ts 4:16.17 e Ap 13:5]. O emprego desta terminologia pôde certamente ser sugerido pelo facto do desaparecimento do corpo de Cristo [Mc 16:6; Mt 28:5; Lc 24:32; Jo 20:2] ao qual os textos dão certa importância. O Jesus de S. João fala a linguagem primitiva do anúncio pascal. A Ressurreição é entendida como elevação, glorificação e ir para o Pai. Essa concepção está ligada ao tema do Messias, do Filho do Homem e do Servo Sofredor que é exaltado. Assim são, nos Actos, interpretados os Salmos 110 [Act 2:34] e Salmo 2 [Act 4:26]. Os factos pascais são vistos como a entronização do Messias-Rei como «Senhor e Cristo» [Sl 2; Act 2:36] e sua elevação como «Senhor e Salvador» [5:31].

A mensagem pascal é ainda interpretada por uma outra categoria de pensamento, a escatológica. Segundo esta, esperava-se, para o final dos dias, a ressurreição dos mortos. Os Apóstolos viram na Ressurreição de Jesus a realização dum facto escatológico. Se falam e anunciam a Ressurreição isso significa, nos moldes das categorias bíblicas, Ressurreição real e corporal. Vida sem corpo – embora glorificado [Mc 13:43] – para um judeu, é impensável. Como as manifestações de Jesus, no uso da terminologia da ressurreição, mostravam um Jesus glorificado era necessário deixar clara a identidade entre o crucificado e o glorificado. Os textos doa Actos (cf, 2:32; 3:15; 5:30) acentuam essa identidade, bem como, mais tarde, o fazem Lucas e João frente aos gregos. Essa terminologia recalcou, em grande parte, a outra de origem apocalíptica. Isso, por motivos óbvios, já que, frente à negação do facto da Ressurreição, devia-se acentuar a realidade da transfiguração da existência terrestre de Jesus. Por aí vemos que os fenómenos das aparições, das falas de Jesus vivo após a crucificação e do sepulcro vazio não foram logo interpretados como Ressurreição da carne, mas como elevação e glorificação do justo sofredor. Esta interpretação parece ter sido a mais antiga. Evidentemente, ela pressupõe também o Cristo vivo e transfigurado e o sepulcro vazio. Mas a isso não se chamou ainda Ressurreição. Mais tarde, devido às polémicas e por motivos querigmáticos, os fenómenos acima referidos foram mais adequadamente interpretados como Ressurreição, no sentido de total transfiguração da realidade terrestre de Jesus. Por isso, a Ressurreição é sempre referida à história de Jesus: à sua morte e sepultamento.

A interpretação dos fenómenos pascais como Ressurreição já vem testemunhada por Paulo em 1Cor 15:3-5, como acima referimos já. A expressão: ‘foi ressuscitado ao terceiro dia’ pode ser uma reminiscência histórica. Mas é também uma expressão oriental para dizer: ‘Cristo permaneceu só temporariamente na sepultura’. Segundo a crença geral, após esse espaço de tempo a vida se separaria definitivamente do cadáver. Quatro dias significaria ‘permanência definitiva’ [Didaqué 11:5]. A expressão ‘segundo as Escrituras’ não precisa de ser referida a nenhuma passagem explícita. Apenas quer exprimir a unidade da acção salvífica: o Deus que agiu outrora no Antigo Testamento (AT) agiu agora maximamente ressuscitando a Cristo. A referência aos testemunhos não precisa ser cronológica. A aparição a Pedro aparece já na seguinte fórmula, uma das mais antigas do Novo Testamento (NT): «Jesus Cristo ressuscitou verdadeiramente e apareceu a Simão» [Lc 24:34]. A aparição a 500 irmãos de uma vez só não precisa ser tomada ao pé da letra. Talvez essa aparição seja a mesma indicada por Mateus 28:16ss no Monte da Galileia. A referência de uma aparição a Tiago fala em favor da credibilidade desse testemunho Paulino, porque o grupo de Tiago [Gálatas 2:12] se distanciara desconfiado do evangelho de Paulo acerca da liberdade cristã frente ao culto da Lei do judaísmo bíblico.

As fórmulas de fé em 1Cor 15 e nos Actos 2-5 deixam entrever, pela sua formulação rígida, que a Ressurreição não é nenhum produto da fé da comunidade primitiva, mas testemunho de um impacto que se lhes impôs. Não é nenhuma criação teológica de alguns entusiastas pela pessoa do nazareno, mas testemunho de fenómenos acontecidos depois da crucificação e que os obrigara a exclamar: Jesus ressuscitou verdadeiramente. Esse pequeno credo proclama os magnalia Dei realizados em Jesus e corresponde ao credo do povo judeu no Dt 26:5-11. O sepulcro vazio não é objecto de pregação, mas é antes suposto. As aparições são sempre atestadas como fundamento das duas possíveis interpretações, seja como elevação-glorificação do justo de Deus, seja como Ressurreição no sentido de uma acção de Deus transfigurando em vida nova de glória o Crucificado.

Ecce Homo


Donde veio a convicção dos Apóstolos na Ressurreição de Jesus?_2

Ninguém viu a Ressurreição. O evangelho apócrifo de S. Pedro, descoberto em 1886 (surgiu por volta de 150dC na Síria), narra o modo como Cristo ressuscitou diante dos vigias e dos anciãos judeus. Mas a Igreja não o reconheceu como canónico, porque certamente já a consciência cristã cedo percebeu que assim maciçamente não se pode falar da Ressurreição do Senhor. Possuímos apenas testemunhos que atestam duas coisas: o sepulcro está vazio e houve várias aparições do Senhor vivo a determinadas pessoas. Devemos, portanto, analisar as tradições que falam do sepulcro vazio e aquelas que referem aparições.

Grande número de exegetas, independentemente da sua confissão religiosa, chegou à seguinte conclusão: primitivamente, ambas as tradições circulavam autonomamente, uma ao lado da outra. Em Marcos 16:1-8, onde se narra a descoberta do sepulcro vazio pelas mulheres, temos já trabalho redacional combinando as duas tradições. A ligação, porém, não se ajusta bem. Os textos revelam tensões ocasionadas pelos versículos 5-7 que tiram a unidade ao relato. Se lermos Marcos 16:1-5a.8 a homogeneidade do relato transparece límpida: (1) as mulheres vão ao sepulcro; (2) encontram-no vazio; (3) fogem de medo e nada contam a ninguém. A aparição do Anjo com a sua mensagem (5b-7) seria um acréscimo tirado da outra tradição que só conhece aparições e não o sepulcro vazio. Qual a função do relato do sepulcro vazio, testemunhado pelos quatro evangelistas? Qual o seu Sitz im Leben?

Leonardo Boff
A nossa ressurreição na morte
Ed. Vozes, Petrópolis 2004, 10ª edição, pp-41-55