teologia para leigos

22 de janeiro de 2012

ATÉ OS BARCOS DA ARMADA SOVIÉTICA O SAUDARAM...

Há 50 anos – Roma, 11 Out. 1962
Abertura Solene do Concílio Ecuménico Vaticano II




Um Papa que era cristão

João XXIII, ao contrário do seu predecessor, não queria ser um grande eclesiástico, grande orador, diplomata, cientista ou organizador – tal como o dissera no seu discurso de coroação − mas apenas um pastor. À imagem do Pedro bíblico, ele queria consolar, fortalecer e estimular os irmãos e irmãs. Com o passar do tempo, revelou-se mais e mais como «grande a servir», ancorado na palavra de um Outro de grandeza inquestionável: «Quem de entre vós quiser ser o maior, seja vosso servidor». Não ensinava um papado novo ─ vivia-o! Assim, introduziu no papado uma mudança de paradigma com o qual se iniciava uma época: em vez do primado romano absolutista, como o era desde Gregório VII e Inocêncio III até Pio IX e Pio XII, introduziu um primado pastoral de serviço, um papado de rosto humano, cristão.

Portanto, nada de estranhar que, prontamente, Karl Barth me tivesse dito: «Agora, ao invés da época do senhorial Pio, a partir da cadeira de Pedro oiço ‘a voz do bom Pastor’». E, neste momento, após a sua morte, em alguns sítios se desdenha da comparação dos opostos João e Pio: a oficiosa «Documentation Catholique» (Paris) nega-se a publicar a minha nota necrológica, sobretudo porque «faz alusão ao nepotismo de Pio XII», mesmo que da Redacção me digam: «De facto, impossível descrever melhor a figura de João XXIII, mas nem sempre convém dizer todas as verdades (‘toutes les verités ne son pas toujours bonnes a dire’)». Pergunto: será sempre melhor maquilhar, ocultar, mentir, mesmo que postumamente?

O Papa Roncalli ─ um santo?

Sem dúvida. Para as pessoas, não só um bom homem, mas um verdadeiro cristão. O seu Diário íntimo demonstra, com toda a sua qualidade de bondade, a sabedoria de um coração amplo: no mais fundo, o que importa é imitar a Cristo. Ele quer ser, com a máxima naturalidade, a «imagem do bom Jesus» e, como Papa, «servidor de Deus e servidor dos servidores de Deus». Não era uma pessoa extraordinária, nem muito menos um santo. Nada de aparições de Nossa Senhora nem de Cristo, nada de mistérios de Fátima, nem de espectáculos piedosos. «Pio X era um santo e não o sabia; Pio XI não o era e sabia-o; Pio XII era e sabia-o», contava-se, como piada, na Cúria. E João XXIII? Um Papa que não necessita de «canonização», nem sequer que, por parte dos historiadores conciliares, se omitam os seus erros fatais. Para que serve a constantemente distorcida palavra «santo», a politicamente instrumentalizada e romana «declaração de santo» (mesclada, aliás, com enormes transacções financeiras a favor da Cúria)? Um Papa cristão ─ eis a novidade sensacional!

Em vez de milagres, obras de misericórdia: na verdade, quem, como Papa e pessoalmente, de entre os seus predecessores, visitou os pobres, consolou os enfermos em hospitais, visitou sacerdotes cujas vidas foram um fracasso? Quem visitou a prisão de Roma com quase 1.200 reclusos? E quem encontrara as palavras certas, ali, na Cadeia, onde inclusivamente os grandes oradores titubeiam? De modo muito simples, o Papa Giovanni contou, a esses reclusos e malfeitores, que nunca haviam sonhado com este tipo de visita, como as cadeias o haviam impressionado desde miúdo, por um tio seu ali ter ido parar por andar, furtivamente, à caça. O «Osservatore Romano», que frequentemente omitia as partes melhores dos discursos do papa, trocou a palavra «tio» por uma outra, menos ofensiva para a dignidade papal: «parente». Sempre que o Papa falava, as suas palavras chegavam ao fundo dos corações. O seu compromisso pastoral ia-o buscar à Bíblia, com a qual se familiarizara diariamente, sobretudo através do missal e do breviário. Fora assim que se livrara, sem dar nas vistas, de certos estereótipos e clichés romanos, tradicionais. E já Papa, lia os escritos, colocados no Índex, do teólogo reformador italiano Antonio Rosmini e do seu companheiro de estudos, e três vezes excomungado, o «arquimodernista» Buonaiuti ─ que morreria no domingo de Páscoa de 1946 como «excomungado vitando», vítima dos jesuítas e dos fascistas ─, do qual o Papa sempre falara com respeito citando-o pelo nome de sacerdote «D. Ernesto».

Apesar do seu considerável fracasso junto da Cúria ─ o que nunca se deve fazer de conta que não existiu ─, com a sua humanidade suave e o cristianismo singelo que irradiava, João XXIII conseguiu, de forma absolutamente espontânea, e sem nenhum tipo de violência espiritual, de ameaças ou sanções, um grande consenso na Igreja («consensus ecclesiae») que tanto lhe era querido, e isso muito para lá dos muros da igreja católica romana.


Mudança na política eclesiástica: o primeiro Papa ecuménico

«Giovanni ventitresimo» foi também o primeiro Papa ecuménico. Sim, foi uma figura de esperança para toda a humanidade. ‘Da noite pr’ó dia’, tirou a Igreja duma atitude reticente praticada pelo seu antecessor quanto ao desafio ecuménico, e deu-lhe uma orientação ecuménica. É certo que já existia um movimento ecuménico na Igreja Católica, mas isso pertencia a uma pequena vanguarda de teólogos e leigos muitas vezes marginalizados. O Papa João converteu a ‘unificação dos cristãos separados’ e a abertura ao judaísmo e a outras religiões mundiais em assunto da Igreja inteira, do Episcopado e, também, mas mais limitadamente, do vaticano. É certo que já antes dele «se haviam aberto os braços»era a linguagem de Roma ─ aos demais cristãos. O certo é que isso nunca se foi além dum convite a que regressassem a casa… Foi, João XXIII, o primeiro a demonstrar que não bastava abrir os braços, mas que tínhamos que «meter as mãos na massa», trabalhar decididamente com humildade: fazermos aquilo que tínhamos que fazer, a partir do lado católico, para preparar a reunificação e para nos tornarmos mais próximos das outras Igrejas.

Representou uma mudança histórica, finalmente, que João XXIII enterrasse, sorrateiramente, o estéril anticomunismo de Pio XII, o qual excomungara todos os membros de todos os partidos comunistas. Desde a fundação do Estado do Vaticano, foi o primeiro Papa que se manteve à margem da política interna italiana em matéria de eleições, e se manteve equidistante face a todos os partidos políticos, incluindo a Democracia Cristã. O ambiente da Cúria, amplamente fascista no passado e agora conservador, mostrou-se maioritariamente consternado e, com ele, os meios conservadores de Itália. O Papa introduziu uma mudança de estilo, de métodos e de mentalidade na política do Vaticano face à Igreja e ao Mundo, o que desembocou num prudente abandono da intromissão na política italiana e num «modus vivendi» com os Estados do Bloco de Leste, que dará frutos mais tarde, como o reconheceram, por fim, os bispos alemães.

Monsenhor AGOSTINO CASAROLI, responsável pela «Ostpolitik», (política de abertura a Leste), trabalhou de forma planificada e constructiva. Na sequência do agravamento do conflito Este-Oeste com o levantamento do Muro de Berlim em 1961, João XXIII, a partir duma «neutralidade activa» conscientemente defendida, emitiu apelos à paz e fez advertências sobre a guerra atómica. Para sua surpresa, no dia dos seus 80 anos, a 25 de Novembro de 1961 recebeu os parabéns, como «homem de paz», por parte do chefe do Partido Comunista da União das Repúblicas Socialistas e Soviéticas, NIKITA KRUSCHEV: era a primeira resposta dos soviéticos a esta abertura do Vaticano, desde a Revolução de Outubro de 1917! Claro que fora uma resposta provocada pelo próprio Papa, na medida em que, de modo confidencial e através do dirigente comunista italiano Palmiro Togliati (cujo «pensamento» crítico face a Moscovo ajudará mais tarde ao surgimento do «eurocomunismo»), havia emitido, para Moscovo, sinais do interesse do papa pelo melhoramento das relações mútuas. Aos Bispos da Europa de Leste, Kruschev prometeu-lhes que poderiam deslocar-se ao Concílio. Após um novo agravamento do conflito Este-Oeste, com a Crise de Cuba de 1962, [a chamada «crise dos mísseis»]com o Concílio já em andamento, uma intervenção do Papa, fazendo de novo uma chamada a ambas as partes, contribuiu para o início do processo de distensão.

«Não se tinha ido longe de mais?», perguntavam, depois da sua morte, os inimigos de Roncalli, na Cúria. Que o Papa, inclusivamente, tivesse recebido no Vaticano um comunista que tinha abandonado a Igreja (pelo apoio desta ao fascismo), filho também de Pérgamo, o grande escultor Giacomo Manzú, para que lhe fizesse o seu retrato e criasse a última porta, à esquerda, das sete grandes portas de S. Pedro (a «Porta da Morte», para os cardeais mortos); que a espectacular visita de Alexei Adyuvei e da sua esposa Rada ao Vaticano culminasse com uma audiência privada: aos velhos guardiões do Vaticano (outrora, fascistas), tudo isso parecia politicamente estúpido e perigoso. Na sua encíclica «Mater et Magistra» (1961), a «questão social» já não é identificada, por João XXIII, apenas com a questão dos trabalhadores da Europa, mas alarga-a ao problema do solo, da agricultura e dos camponeses. Com uma claridade como Papa algum antes dele tivera, condena o colonialismo e o subdesenvolvimento. Para a revista «Time Magazine» é «o homem do ano». Aí está uma má recomendação para os homens da ala direita do Vaticano, como igualmente o será o prémio Balzan, da Paz, por ele aceite contra a opinião curial.

Desde a Reforma, até mesmo desde a divisão da Igreja Oriental da Ocidental no século XI, nunca Papa algum encontrara adesão tão ampla. A este respeito, todas as notas de condolências oficiais expressaram efectivamente aquilo que uma imensidão de gente sentia. «O essencial é a mudança radical nas relações entre a Igreja Católica romana e as outras Igrejas, o que pressupôs o começo dum verdadeiro diálogo» - manifestou o Secretário Geral do Conselho das Igrejas, doutor Visser’t Hooft. E o mesmo se poderia dizer também da relação com o Judaísmo, as outras religiões e os homens do mundo secular. Até os barcos da armada soviética, presentes no porto de Génova, fazem ondular as bandeiras a meia-haste.

As forças reaccionárias da Cúria encontram-se diante de um plebiscito da opinião pública mundial que as surpreende e incomoda. Mas mantém-se uma demarcação: as manifestações de confiança por parte de todo o mundo não significam a aceitação do papado como instituição. Na sua pretensão medieval, nunca questionada, de domínio absoluto dentro da Igreja e na sua infalibilidade quanto ao doutrinal no que diz respeito aos outros cristãos e aos homens seculares, tudo se torna inaceitável de ora em diante. Desgraçadamente, a Cúria do Papa, o seu núcleo duro, não assumiu a mudança de paradigma, contra os muitos desejosos de tal mudança. Nem simpatizou com o Papa do Concílio, nem tampouco gostou do modo mais ajustado ao evangelho como exerceu o seu ministério. Diziam eles: serão precisos cem anos para emendar seus erros! Um sintoma: duas vezes – em Novembro de 1964 e em Outubro de 1965 – alguns bispos tentaram apresentar, no Concílio, uma proposta que declarava ‘santo’ o Papa João, não segundo um procedimento burocrático, mas, como às vezes acontece, «per aclamationem» (por aclamação). Pelas duas vezes, a Cúria o impediu. No entanto, quem imaginaria que esta mesma Cúria iria beatificar João XXIII a 11 de Setembro de 2000sob um estrondoso aplauso da multidão reunida – e, lado a lado e ao mesmo tempo, beatificado também o seu antípoda Pio IX (!)  – sob um silêncio quase absoluto –, Pio IX precisamente, autoritário inimigo dos Direitos Humanos, antisemita, egocêntrico e propalador da sua infalibilidade? Por isso, e uma vez mais, pergunto: que significa isso de «santo» e de se «declarar santo» a alguém ou «canonizar» alguém? «Corruptio optimi péssima»: péssimo é a corrupção do melhor.

Nem o titubeante Paulo VI, nem João Paulo I, de vida excessivamente curta, nem o dividido e ao mesmo tempo autoritário João Paulo II conseguiram, como o conseguiu João XXIII junto do Concílio Vaticano II por ele convocado, tocar as cordas mais fundas dos homens, dentro e fora da cristandade: as ânsias de consenso, de paz, de convivência; o desejo de uma Igreja renovada num mundo melhor. O Papa Roncalli pretendia abrir as janelas da Igreja e conseguiu-o. Verdadeiramente, foi o maior Papa do século XX.

Estes cinco anos, de 1958 a 1963, foram uma «window of opportunity»: com João XXIII termina um pontificado muito acalentador. Tudo o que o concílio fez foi apenas um começo. A tarefa que se lhe situava por diante era gigantesca e o resultado inseguro. Aliás, como já se disse, a 22 de Novembro do ano de 1963, dá-se a segunda desgraça: o assassinato do Presidente Kennedy. Fica, o mundo, privado duma segunda esperança. Desapareceram os astros gémeos de uma constelação de esperança, de um novo paradigma de «catolicismo»: o Papa símbolo duma bondade que abarca toda a humanidade, de 82 anos, e o presidente símbolo duma juventude e duma «nova fronteira», de 47 anos. «Partem sempre primeiros os que não merecem, enquanto os outros por cá se ficam…»: não sou alheio a esta diatribe com os planos e disposições de Deus.

Apenas mais uma nota final a este capítulo: Páscoa de 2002. Releio, em jeito de revisão, as minhas páginas, de 1963, carregadas de esperança, sobre a Igreja na América e sobre João XXIII, mas a meu lado tenho o número de 1 de Abril de 2002 da «Time Magazine», que traz o chocante título: «Can the Catholic Church save itself?», «Pode a Igreja Católica salvar-se a si própria?». Tal como antes já a «Newsweek», com páginas dedicadas a crónicas chocantes sobre pedofilia de padres católicos, relatava a diminuição catastrófica do número de sacerdotes, freiras e aspirantes ao sacerdócio, bem como a subida, até aos 27%, de paróquias sem padre (tal como na Europa, aliás).


Hans Küng

«Libertad conquistada – Memorias», Editorial Trotta, 2007, pp. 421-426.