teologia para leigos

8 de junho de 2011

ISABEL STILWELL ENTREVISTA MICHEL RENAULD - QUE «VALORES» EM CRISE?

«A nossa crise política é uma crise essencialmente ética»



Michel Renaud - (foto de Rowan Harvey)



Isabel Stilwell (IS): A palavra Ética é usada a torto e a direito, mas o que quer realmente dizer?
Michel Renauld (MR): A palavra vem de um termo grego que acabou por designar a interioridade humana da qual brota o agir. Mas hoje podemos dizer que há pelo menos duas maneiras de ver a Ética: a ética como o Bem por oposição ao Mal. Ou a Ética como busca do melhor. E a busca do melhor significa que há atitudes boas, mas que umas são melhores do que outras. Penso que o ideal da Ética é a procura da vida boa, que não é necessariamente a ‘boa vida’ [risos], mas sim o facto de ter uma vida que realizou qualquer coisa.

IS: Por vezes usa-se ‘moral’ como sinónimo de ética...
MR: A ética, ao contrário da moral, não começa por falar de modo negativo. Não nos coloca no campo das obrigações. A moral diz ‘não faças isto’, fala dos deveres, do que não se deve e do que se deve fazer, ao passo que a ética diz como se age melhor, e como se vivem os grandes valores de vida.

IS: Se calhar educamos com demasiados ‘não faças’?
MR: Antes de falar muito em deveres, devíamos reflectir sobre os grandes valores. Aí os mais novos perceberiam por que é que vale a pena seguir determinadas regras. No contexto da educação, dever-se-ia sempre dizer o motivo pelo qual se proíbe um comportamento: é com efeito em nome de um valor positivo que se proíbe qualquer coisa. A proibição, a regra apenas se justificam pelo valor que promovem e não pelo facto de provir de uma autoridade arbitrária.

Mas de onde vêm os valores? Nasceram todos simultaneamente, são revelados, descobrem-se?

Primeiro é preciso ter consciência de que todos os valores foram descobertos numa cultura e numa época específica da história da humanidade. O valor é sempre inventado por alguém que o vive. São «agidos» antes de serem pensados. Mas se só os pensássemos e ninguém continuasse a vivê-los, então entrariam em crise e poderiam perder-se. É preciso acrescentar, contudo, que os valores não estão em pé de igualdade.

IS: Como num jogo de cartas, um valor pode ‘cortar’ os outros, agir como um trunfo?
MR: O filósofo alemão Max Scheller, que criou uma espécie de tabela de valores, mostra que os valores mais básicos são os valores vitais: precisamos de comer e de beber, de ser abrigados; estes são valores que mantêm a vida biológica. Depois há valores mais elevados, por exemplo os estéticos, que já são especificamente humanos. Os valores estéticos não são puro luxo, a beleza transfigura a nossa vida, mas não substituem os primeiros. Do mesmo modo, há valores espirituais, que também implicam todos os precedentes.

IS: E são universais, ‘servem’ para toda a humanidade, independentemente da sua cultura?
MR: Os valores mais altos são absolutos e universais. Mas isso não significa que sejam praticados por todo o lado e em todas as épocas. Portanto, não se trata de uma universalidade «de facto», como se estivessem presentes em todas as culturas. Tudo se passa como se houvesse uma exigência de «universalidade»: levaram muitos séculos a serem descobertos, vividos e depois proclamados. Significa então que se os perdermos – e podemos perdê-los – haverá um grave recuo em «humanidade» e na humanidade.

IS: Quer dar-me um exemplo de um desses valores absolutos?
MR: A dignidade do ser humano, por exemplo, e os valores ligados ao respeito por essa dignidade. Quando digo que um determinado valor é absoluto, quero dizer que o «valor» desse valor já não depende da cultura na qual foi descoberto, mas que vale por si próprio, sem que seja necessário recorrer à sua história para o compreender. Além disso, há outra coisa que merece reter a nossa atenção: os valores são sempre vividos em primeiro lugar por minorias activas.

IS: O contrário das maiorias políticas, portanto? [risos]
MR: A ética e a política não correm de modo simultâneo. Em democracia, a política faz-se com maiorias, mas a ética «progride» com minorias. Por exemplo, a justiça social parece-nos um valor adquirido, mas no século XIX não era fácil fazer uma greve no local de trabalho; houve gente que morreu por esse valor. O que mostra que são muitas vezes os heróis que conseguem promover um valor, até que este seja reconhecido pelas grandes maiorias políticas e sociais.

IS: E aí transformam-se em lei?
MR: As leis políticas incorporam valores éticos que se tornaram consensuais. Porque a nível ético não podemos impor a ninguém os nossos valores, de que resulta a sua fragilidade, mas também a sua nobreza.

IS: Mas acredita que a política pode ser ética?
MR: Devia, e podia ser! Uma prova lateral disso é que nenhum político democrático vai dizer que não acredita na ética ou pode prescindir dela; o que significa que todos reconhecem, pelo menos, a necessidade de ética no desempenho das funções políticas. Mesmo quando não a praticam.

IS: A confiança dos portugueses nos políticos está num ponto baixo...
MR: Isto acontece porque, se por um lado, a política não é capaz, por si mesma, de tornar as pessoas muito éticas, por outro, sem a ética a política entra em crise. A política apenas sanciona as infracções às normas, eventualmente éticas, codificadas nas leis. Não entra no âmago da consciência humana nem nos actos, eventualmente eticamente reprováveis, que não são conhecidos ou que não fazem parte das exigências legais. A política «obriga», com a presença de sanções. Na ética, não há sanções que provêm de fora (salvo no contexto educativo), mas há a auto degradação ética, quer ela seja conhecida dos outros, quer não. Por exemplo, para a lei portuguesa, o aborto legal até às dez semanas é considerado «politicamente» como neutro, aceitável, qualquer que seja a avaliação ética pessoal.

IS: Ou seja, para recuperar a credibilidade, os políticos têm de ser intrinsecamente éticos?
MR: A política não será capaz de voltar a encontrar a sua credibilidade se não houver ética. Penso que é importante entender que a crise política da sociedade portuguesa é uma crise primordialmente ética: há uma crise de credibilidade dos políticos, uma falta de confiança da sociedade civil no modo como os políticos desempenham as suas funções.

IS: Mas o que podemos fazer para garantir essa mudança?
MR: Se calhar temos de pensar no futuro, porque o grande motor de ética é a educação.

IS: A ética ensina-se, nomeadamente na escola?
MR: A ética não se ensina, nem se aprende apenas teoricamente, mas propõe-se e testemunha-se. Há modelos. A função dos modelos é fundamental em todos os níveis de ensino. Os professores de que nos lembramos não são, necessariamente, os mais inteligentes, mas antes aqueles que nos marcaram pela sua atitude para connosco, pela sua postura perante a vida.

IS: Estamos a perder valores, como tanto se repete, ou todas as gerações reagem perante a forma como os mais novos os recriam?
MR: Atenção, o modelo não existe para ser imitado a papel químico, mas, no meu entender, houve, de facto, um recuo da dimensão ética da gestão política e administrativa da sociedade. O interesse pessoal parece com efeito predominar, muitas vezes, sobre o serviço público. Mas um recuo ético não é necessariamente definitivo.

 IS: Precisamos, portanto, de melhores modelos, é isso?
MR: Sim, porque os valores que deixam de ser vividos esbatem-se progressivamente, até serem revividos por outras pessoas ou por outras gerações. Temos a esperança, e a esperança permite-nos pensar que nunca são definitivamente perdidos.


ISABEL STILWELL (entrevistou Michel Renauld)
DESTAK, 08:VI:2011


Nome: Michel (Marie Joseph Gabriel) Renaud. Nasceu: Em 1941, em Liège, na Bélgica. Casou com uma portuguesa e vive em Portugal desde 1980. Formação: Licenciatura e doutoramento em Filosofia, na Universidade Católica de Louvain. Profissão: Professor catedrático de Filosofia na UNL e colabora no curso de Doutoramento do Instituto de Bioética, UCP, é vice-presidente do CNECV.




Destaques da Entrevista:

Corremos o risco de politizar a ética. «A forma de pensar a ética é uma das coisas que mais me preocupa na actualidade. Por exemplo, estando no Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV) desde a sua fundação, verifico que a busca de consensos acaba, várias vezes, por fazer da ética a procura do mais pequeno denominador comum, aceitável por todos os membros, em vez de procurar e valorizar as respostas mais éticas e eventualmente mais exigentes. Muitas vezes, na discussão de uma Comissão de Ética qualquer, não se procura o ideal, a recomendação do melhor caminho, mas apenas o que a sociedade é capaz de aceitar. Considero que se corre assim o risco, bem real, de politizar a ética.»


«Em democracia a política faz-se com maiorias e a ética com minorias. Mas a política podia e devia ser ética»


«Houve um recuo da dimensão ética da gestão política e administrativa da sociedade. O pessoal parece dominar o público»


«Não temos a capacidade de viver todos os valores do mesmo modo, por isso temos de fazer escolhas. Por exemplo, quando um estudante na véspera de um exame se encontra face a dois comportamentos possíveis, ir para a praia (e descansar é um valor), ou estudar, tem de hierarquizar os valores. Isto gera um dever: dizer não à praia. É um valor superior que se torna dever quando é preciso superar um obstáculo, o que implica aparentemente um certo sacrifício. Mas as pessoas totalmente reconciliadas consigo próprias não vivem a vida ética a partir de deveres.»