teologia para leigos

13 de abril de 2011

RESSURREIÇÃO REPENSADA [FAUS E QUEIRUGA] 3/6


3.«agora vemos como num espelho fosco…» [1Cor 13:12]





Páscoa 2011 – ‘Creio’ na ressurreição das vítimas


O anúncio cristão não é simplesmente que «alguém» ressuscitou de entre os mortos (isso poderia referir-se apenas a uma vitória sobre a morte), mas que Jesus ressuscitou de entre os mortos. E Jesus é uma vítima: a maior vítima (ou a mais inocente) da história humana. 



Por isso, (contra a linguagem bastante difundida na Igreja «oficial») a teologia insiste hoje, não só que a Ressurreição de Jesus não pode ser separada da sua morte, como também a morte de Jesus não pode ser separada da sua vida: Jesus morreu por viver como viveu, pela conflitualidade que a sua vida de homem justo desencadeou.

E ressuscitou também por ter vivido como viveu e por ter morrido como morreu, ou seja, por causa do modo como foi morto. Sem estas íntimas relações o anúncio da Ressurreição de Jesus falha, já que a justiça e o juízo de Deus consistem em «salvar os humildes da terra». [Isaías 11:4]

Estas correlações permitem aproximar a figura de Jesus de outras duas figuras do Antigo Testamento - uma histórica, outra poética (mas poema que procura condensar toda uma experiência histórica): refiro-me aos Macabeus e ao Servo de Yahvé.


O martírio dos Macabeus

Trata-se do crime típico de todos os imperialismos: arrasam os credos, os costumes e as consciências dos países que invadem, tudo em nome duma suposta «globalização», a qual não é mais do que a mundialização do seu projecto de poder. Tendo como pano de fundo a tortura de seis irmãos na presença da própria mãe (não por terem cometido crime de Estado algum, mas pela sua fidelidade em cultuar ao seu Deus), ela e seus filhos pronunciam uma das primeiras afirmações de fé clara na ressurreição:

«É uma felicidade perecer à mão dos homens, com a esperança de que Deus nos ressuscitará.» [2 Mac 7:13]

«Não sei como aparecestes nas minhas entranhas, porque não fui eu que vos dei a alma nem a vida, nem fui eu que formei os vossos membros. Mas o Criador do mundo, autor do nascimento do homem e origem de todas as coisas, restituir-vos-á, na sua misericórdia, tanto o espírito como a vida, se agora vos sacrificardes a vós mesmos por amor das suas leis.» [2 Mac 7:22-23]

O mérito não é simplesmente «morrer», mas morrer «às mãos de homens», isto é, de morte injusta e não natural. Surge aqui o vislumbre da ressurreição, tal como no drama de Job.




A figura do Servo de Yahvé

Este personagem misterioso, que ocupa todo um capítulo de Isaías [52:13 e 53:1-12], descreve um ser maltratado, reduzido a um aspecto infra-humano, visto como ‘castigado por Deus’ pese embora a sua mansidão não violenta, mas que – tal como revela o poema – na verdade, carrega com os pecados dos que o julgaram. A este personagem, tanto no início como no final do poema, Deus concede exaltação e triunfo após a morte [52:13 - «o meu Servo terá êxito, será muito engrandecido e exaltado»; 53:10b - «terá uma posteridade duradoura e viverá longos dias»].

Muito se discutiu sobre as identificações históricas deste personagem misterioso (uma delas pode muito bem ser o próprio povo judeu desterrado na Babilónia, humilhado, sofrendo inúmeros castigos por causa da sua fidelidade a Deus). Também é conhecida a rápida identificação que o cristianismo primitivo fez desta figura misteriosa com Jesus de Nazaré, desde os tempos primordiais do Novo Testamento.

A pergunta que levanta a figura do Servo de Yahvé e, com ela, todos os personagens e destinos históricos que podem estar condensados nesta figura, é esta singela pergunta que continua sendo também a grande pergunta que fazemos a nós próprios, ainda que preferíssemos não lhe dar ouvidos: tem sentido um caminho de serviço e de defesa das vítimas contra os seus verdugos? Pergunta-se: tem-no, não em abstracto, mas nesta história humana concreta, cujo prognóstico mais provável será nova vitória para os verdugos e alguma forma de cruz para o servidor?

Jesus de Nazaré respondeu-lhe afirmativamente com toda a sua vida. Respondeu que SIM a partir da sua intimidade única com Deus e a partir da sua proximidade única a Ele. E continuou dizendo que SIM inclusivamente no NÃO total que experimentou (por exemplo na sensação de abandono por parte de Deus), simbolizado na sua condenação pelos representantes de Deus e em nome de Deus. Aquele que crê em Jesus e aquele que segue Jesus também pode responder afirmativamente a essa pergunta: sabendo que esse sentido está em Jesus e na Ressurreição.





Este é o significado primário da Ressurreição de Jesus: nós, cristãos, acreditamos na ressurreição das vítimas, e isso deveria estar claramente expresso no nosso Credo.

Se essa ressurreição nos há-de afectar também a nós, a nós que não somos vítimas (e que até somos cúmplices dos verdugos, pelo menos em parte) é uma questão ulterior. Quiçá não teria sido uma ‘questão ulterior’ aquando da intenção criadora de Deus, mas converteu-se numa questão ulterior à vista deste mundo e desta história tecidos de vítimas inocentes, de injustiças e crueldades sem conta, com apenas alguns fogachos ou vislumbres com que a justiça teima em abrir caminho nesta história - ainda que a história saiba muito bem que sozinha não poderá nunca recuperar as próprias vítimas.



É uma questão ulterior, mas não é uma questão distinta. Está implicada na anterior. Isso significa (tal como insinuam os últimos versos do citado poema do Servo de Yahvé) que é graças às vítimas, através delas ou por intercessão delas (como queiramos formulá-lo) que poderemos esperar a ressurreição em que acreditamos.

J I González Faus

[fotos: 1. Haiti; 4. e 5. Praça de Maio, Argentina]